sábado, 23 de fevereiro de 2013

CHEGA DE TRISTEZA

Faz mais ou menos sete meses que não escrevo aqui. Não por falta de assunto, já que muita coisa aconteceu nesse tempo, umas ótimas, outras muito ruins, mas a falta de ânimo me atacou depois de mais algumas perdas.
As últimas foram as de Adriano Stuart e Magro Waghabi. Adriano adorava o vocal do Catavento, desde os tempos de Kiko e Chico. Ele dirigia o programa “Som Brasil”, da Globo,  na década de 90, e nos levou diversas vezes para nos apresentarmos lá. Era nosso grande amigo, com quem passamos muitas noites em botecos paulistanos. Magro, era do MPB4, grupo vocal que serviu como inspiração para o início da carreira do Catavento, e seu principal arranjador vocal durante mais de 40 anos. Uma vez, no fim da apresentação do show “Adonirando”, do Catavento, no Mistura Fina, um espaço nobre do Rio de Janeiro, vi o Magro na plateia, fui ao seu encontro e perguntei o que ele estava fazendo ali. “Sou fã de vocês.”, disse-me ele. Imediatamente falei que iria buscar um CD para presenteá-lo, mas ele disse que havia comprado, por isso estava ali: “...queria conferir ao vivo o que ouvi no CD”. Foi uma convivência de raríssimos encontros pessoais, mas de constantes contatos virtuais. Ele me deixou a impressão de ter ido antes do combinado, porque estava sempre agitado e toda vez que conversávamos falava-me sobre um novo projeto.
Por último, minha mãe. Para ela, escrevi algo na internet, que reproduzo aqui: O abacateiro do vizinho nasceu muito próximo do vértice que une quatro vizinhos e está completamente carregado. Ontem, a Lisa observou que o abacateiro é muito generoso, porque seus galhos avançam os muros e ele distribui igualitariamente seus frutos entre os quatro vizinhos. Minha mãe era assim. Passou sua vida distribuindo seus frutos entre os quatro filhos que teve. Hoje, olhei para o abacateiro e pensei que a quantidade de abacates do lado da nossa casa era menor que a quantidade que estava para o vizinho do lado, mas acho que o vizinho do lado deve pensar a mesma coisa. Assim somos nós, os filhos. Sempre achamos que nossa mãe reserva sua melhor parte para outro irmão, ou irmã. Minha mãe se foi, mas o abacateiro está lá. E ambos continuam nos oferecendo seus exemplos.”
“Chega de tristeza!”, falou a Samba, segurando no meu braço e impedindo-me de estender uma peça de roupa que eu acabara de tirar da máquina de lavar. “Não, Samba. A música do Tom e do Vinícius chama-se Chega de Saudade”, informei à minha cadela mais velha. “O que eu tenho a ver com essa conversa?”, perguntou o Tom, meu gato, que vinha em direção à lavanderia. Expliquei que eu estava falando da música do Tom Jobim com o Vinícius de Moraes. “Vai, minha tristeza e diz a ela...”, cantarolei. “Eu disse chega de tristeza nesta casa. Não estava falando da música.”, reforçou a Samba. “Concordo.”, interferiu a Valsa do meio do gramado, onde tentava se livrar das brincadeiras da Rumba. “Vai, nossa tristeza...”, cantarolou a Rumba. "O que quero dizer, é que muitas outras coisas, e boas, aconteceram pra gente e está na hora de levantar esse astral.", insistiu a Samba.
"Você poderia começar escrevendo uma crônica, bem humorada, sobre a renúncia do Papa Bento XVI.", disse Lambada, a saci, que aparecera entre as folhas do abacateiro. "Benedicto XVI!", corrigiu Maracatu, seu marido, também do abacateiro. "Crônica bem humorada sobre Benedito XVI? Sobre um assunto tão sério como esse?", questionou Samba. "Acho que é uma grande idéia, porque você poderia brincar com o fato de no Brasil, e só no Brasil, o Papa ser chamado de Bento.", disse-me Valsa, colocando uma interrogação na cabeça de todos, inclusive na minha. "É verdade. Bento não é o mesmo que Benedito, no entanto, o Brasil chama o Benedito de Bento.", concordou Lambada.
Lembrei-me que estava com a TV ligada quando um dos cardeais anunciou o nome do novo papa e que também tomei um susto ao ouvir o cardeal anunciando Benedicto XVI e dali a alguns minutos a Globo já o chamava de Bento. Aquilo me chocou, mas com o tempo fui me acostumando. Agora, com esse alerta da Valsa, me voltou à cabeça aquele momento e perguntei se alguém ali tinha alguma opinião sobre o porquê dessa mudança de nome, quando era mais simples e óbvio chamar o Papa de Benedito.
"Acho que é porque soa melhor.", arriscou a Samba. "Acho que ficaram com medo que começassem a chamá-lo de Dito.", falou Tom. "Não quero pensar que seja por preconceito.", falou Rumba, que tem os pelos quase que totalmente pretos.
Instalou-se um silêncio, que foi quebrado por Maracatu: "É melhor não escrever sobre isso.".
Eu havia gostado do tema, mas concordei com Maracatu. Se eu resolvesse escrever sobre isso, iria chegar, inevitavelmente, na questão do Santo Negro Benedito e teria que me aprofundar nas críticas. Quando estiver inspirado, volto a escrever e escolho um tema menos polêmico. 

João Bid

sexta-feira, 15 de junho de 2012

MINHA SALSA


A Salsa morreu. Ontem, perto das quatro horas da tarde. Por mais que a gente pense que está preparado, não está. E ninguém está. Todos em casa estão tristes.
O segundo nome da Salsa é Filomena: Salsa Filomena; porque descobrimos que São Filomeno é protetor dos músicos, dos comediantes e dos Palhaços. Sou músico e a Lisa adora palhaços, pesquisa essa arte, então era esse o segundo nome. Santa Filomena é protetora dos estudantes. Também fica bom.
Por ironia do destino, a Salsa morreu nas mãos de um veterinário-músico. Zé Penone foi flautista do Catavento. Aliás, foi ele quem gravou as flautas no nosso primeiro disco: um vinil, com três faixas, chamado “Disco”. Até hoje, acho a sopro do Zé um dos mais bonitos que ouvi, mas, infelizmente, raras vezes nos encontramos no palco. Acabei ficando sem um grande músico, mas ganhei um excelente veterinário. Amigo, antes de qualquer coisa.
Eu estava falando sobre isso com a Valsa e com a Rumba, sob os olhares de Maracatu e Lambada. A Samba estava recolhida na casinha que ultimamente era mais utilizada pela Salsa. A Lisa estava dentro de casa. Entendi que ela preferiu não falar sobre o assunto até passar um pouco essa dor.
Valsa e Rumba me pediram para contar algumas curiosidades da vida da Salsa. Maracatu e Lambada ficavam me ajudando a lembrar. Algumas eu até contei por aqui e outras foram surgindo e a gente foi relaxando.
Lembrei-me de quando a Samba e a Salsa chegaram pra mim. Eu morava sozinho e era “marinheiro de primeira viagem” com relação à adoção de animais. Eu fiquei uns quinze dias sem comer direito, pois estava sempre achando que alguma coisa estava errada com as duas. Preocupação besta de quem não tem experiência. Um dia, o PT de Mairinque, que sempre foi um grupo de amigos antes de ser um partido político, se reuniu para a troca de presentes, numa brincadeira de amigo secreto. Eu e Lisa acabamos não indo, porque a Salsa havia tomado uma picada de abelha e estava com a pata inchada. Aquilo me deixou apavorado e nem fui à festa, sendo alvo de muito sarro e críticas por parte dos “companheiros”.
“Elas aprontavam muito? Mais que a Valsa e a Rumba?”, perguntou a Lambada. Disse que passei muito sufoco e lembrei que elas quase destruíram minha casa. “Imaginem duas cadelinhas de dois meses, soltas na sala da casa? Estragaram o tapete, riscaram os móveis, comeram o braço da namoradeira e por aí vai.”, contei. “Então não era muito diferente das duas aqui.”, disse Maracatu. “Eu não apronto nada.”, afirmou a Rumba. Valsa apenas sorriu entre os dentes e cantou: “Samba e Salsa rolando na Sala, quem dança sou eu. Pede pra parar... pede pra parar... pede pra parar.”; uma composição que dediquei a elas.
No fim da conversa, disse a Rumba, com a inocência que ainda lhe é peculiar: “É até bonito pensar que a Salsa deu seu último sopro de vida nas mãos da pessoa que tem um bonito sofro de flauta.”, sendo completada pela Valsa: “O veterinário fez tudo para mantê-la viva, mas, num determinado momento, saiu o veterinário e entrou o flautista para conduzi-la a um novo mundo. E a música deve ter sido linda.” Silenciamos todos.
Naquela noite, não pude deixar o compromisso de cantar e, dentro de mim, cantei a noite inteira para a Salsa. Mas no fim, não resisti e falei que iria encerrar cantando uma música para a Salsa. E cantei a música “MEU SILÊNCIO”, de Cláudio Nucci e Luiz Fernando Gonçalves. Sei que a Salsa pediria para eu aconselhar os leitores a ouvir a música. Então, deixo a letra abaixo e peço que procurem ouvi-la. Tem uma gravação linda, da Nana Caymmi, no Youtube.

Velho(a) companheiro(a)
Que saudade de você
Onde está você?
Choro neste canto a tua ausência
Teu silêncio
E a distância que se fez tão grande
E levou você de vez daqui

Sabe, companheiro(a)
Algo em mim também morreu
Desapareceu junto com você
E hoje este meu peito mutilado
Bate assim descompassado
Que saudade de você


João Bid

quinta-feira, 5 de abril de 2012

LEI, ORA A LEI!

Entrei no quartinho das meninas e a Samba estava no centro, com as quatro patas pra cima e quase morrendo de rir. Na porta de entrada, estava a Salsa, também rindo muito. Rumba, deitada na namoradeira, ria, mas suas expressões mostravam que ela estava entendendo muito pouco da conversa. Valsa, em pé, ao lado da namoradeira, estava com as patas dianteiras pra cima, e marcando passos, como se estivesse comemorando algo. Maracatu e Lambada, cada um em cima de uma prateleira, contavam as piadas. “O casal de sacis, contando piadas?”, pensei, parando para prestar atenção, quando percebi que eles estavam lendo para as cadelas a notícia que informava que os senadores estavam debatendo a possibilidade de não mais receberem o 14º e o 15º salários.
“Não sei qual é o motivo de tanto riso. Os caras recebem esse dinheiro indevido faz mais de cinquenta anos e vocês riem como se fosse uma piada? Temos que comemorar, mas esquecer disso!”, falou Valsa, um pouco irritada, sem desmontar a expressão de satisfação.
“Tô rindo do seu entusiasmo com uma coisa que deveria ser normal. Além disso, você não está percebendo que isso não significa avanço.”, respondeu Samba para Valsa. “A Samba tem razão, porque os senadores, deputados, os políticos enfim, não são funcionários, são agentes políticos, não tendo, portanto, direitos trabalhistas. Por isso, esse ato não significa avanço. É apenas uma retomada da normalidade.”, explicou Salsa.
Maracatu levantou a mão, se candidatando para ser o próximo a falar, mas Rumba não deixou e perguntou: “Se estou entendendo, os representantes do povo, que foram eleitos para salvaguardar os direitos do cidadão e fiscalizar a correta aplicação do dinheiro público, são os que mais oneram os cofres públicos?”.  “É mais ou menos por aí, mas acredito que os humanos estão avançando à medida que tomam posições como essa. Cortando mordomias.”, respondeu Lambada. Maracatu conseguiu tomar a palavra para dar um banho de água fria em todos. “Acho que vocês não estão percebendo que existe aí mais um golpe. Todos pensam que os políticos estão tomando uma atitude digna, porém, se esquecem que o 13º salário eles continuarão recebendo, o que não é correto também. Políticos não têm os mesmo direitos conquistados pelos trabalhadores, por isso, eles não recebem salários, mas sim, subsídios.”, denunciou o saci.
“Tem mais essa!”, falou Samba, tomando um ar sério. “O 13º salário também deveria ser extinto, é direito dos trabalhadores e não dos agentes políticos.”, concluiu a cadela.
“Agora tem a lei da ficha limpa. Muito lixo vai ser jogado fora.”, disse o Tom, que acabara de chegar e se posicionara na janela. “Outra mentira!”, afirmou Lambada. “Como mentira? Essa é uma lei de iniciativa popular, apoiada em um milhão e meio de assinaturas, que já foi aprovada.”, argumentou o gato, com cara de quem estava por dentro do assunto. Valsa apoiou o Tom, dizendo: “O Tom tem razão. O país inteiro está aguardando faz um ano para ver os fichas-sujas ficarem fora das eleições.”
“Entendo essa ansiedade, mas vocês se esqueceram que os políticos colocaram emendas no projeto e dificultaram sua interpretação. Pra vocês terem uma idéia, eles colocaram tanta areia que agora o político tem que, além de ter sido julgado e condenado, ter enriquecido ilicitamente. E provar enriquecimento ilícito é quase impossível.”, explicou Maracatu. “O quê?!”, gritou a Salsa, já transtornada. “É isso mesmo. A impressão que se tem, é a de que meia dúzia de políticos se debruçou sobre o projeto e ficou estudando, até eliminarem todas as possibilidades de serem pegos.”, falou, muito desanimada, Lambada. Nesse momento, fez-se um silêncio profundo no quartinho.
Para tentar descontrair o clima, Tom, que há algum tempo se acostumou a assistir futebol comigo, nos domingos à tarde, disse, em clima de piada: “Dizem até, que um político sugeriu que colocassem um artigo na lei dizendo o seguinte: ‘para não poder ser candidato, o cidadão, além de ter sido condenado, precisa ter sido campeão brasileiro pelo Arapiraca, jogando com a camisa 171, em cima do Flamengo, em pleno Maracanã, com um gol dele, aos 49 minutos do segundo tempo.’”. Ninguém riu, mas Valsa não deixou que o constrangimento se instalasse, convidando a Rumba pra brincar no gramado e saindo correndo do quartinho. Rumba saiu latindo atrás dela.
“Dá vontade de desistir dos seres humanos.”, disse Samba, também saindo do quartinho.
“A Samba é muito ansiosa, ainda não aprendeu que certas mudanças não são do dia pra noite. O mais importante é que os honestos não desistam, porque é exatamente isso que os maus políticos querem. Eles não desistem.”, falou a sempre sábia Salsa.
Maracatu e Lambada se despediram, dizendo que voltariam só no outro dia, pois iriam até Brasília assistir a queda de Demóstenes Torres.
“É! Ainda há esperança.”, concluiu Tom.

João Bid

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A VIDA

“A vida é um grande bate papo, que começa no ventre da mãe e não tem fim.”, disse Maracatu, que chegava acompanhado de Lambada à varanda, onde estávamos eu, Lisa e Tom Ravazoli (Não confundir com Tom Diego Ravioli, nosso gato. Tom Ravazoli é o ator que inspirou o nome do nosso gato) conversando após a primeira apresentação do “Causos e Poesias” para os professores da rede municipal de São Roque, na quinta-feira, dia 15.
“Causos e Poesias” é o espetáculo criado para divulgar o livro  “Ida e Volta”, de Roberto Godinho, escritor são-roquense. No espetáculo apresentamos as histórias e as poesias contidas no livro através da interpretação dos atores Tom Ravazoli e Rodholfo Heinz e da atriz Daniela Campos; canções interpretadas por mim e Edson D’aísa; e relatos feitos pelo próprio autor. O espetáculo tem ainda, o roteiro de Isabel Pezzota e direção artística da Lisa Camargo.
Conversávamos sobre o prazer de participar daquele momento, que fala sobre as raízes culturais de Roberto Godinho, nascido em Canguera, um bairro da São Roque, e que tem em seu currículo uma graduação em química na USP, um mestrado em Washington e uma capacidade enorme de emocionar ao escrever e falar sobre sua Canguera. Hoje, Godinho e Inês, sua mulher, estão agregados a esse grande bate papo, que, segundo Maracatu, é a minha vida.
As cadelas e o gato dormiam, por isso, não participavam da conversa.
Tom Ravazoli, que já atingiu a sensibilidade necessária para dialogar com os sacis, perguntou o porquê daquela intervenção. “Eu e Lambada estivemos no espetáculo de vocês e lá comentei com ela que aquilo é vida. A troca é vida. A busca é vida. Tudo isso faz parte desse grande bate papo, que nunca termina.”, disse o saci. “Como não termina? Você se esqueceu da morte?”, interferi. “O bate papo continua através das coisas que você deixar. Suas idéias, seus projetos, sua arte vão continuar dialogando com as pessoas.”, falou Lambada, a saci, com extrema segurança.
Calamo-nos por um tempo, pois aquilo era profundo. Simples, óbvio, mas profundo. “Eu nunca tinha pensado nisso, mas vocês têm absoluta razão. Eu mesmo converso todos os dias com Brecht.”, revelou entusiasmado o Tom. A Lisa, que é uma voraz leitora, sorriu e disse que nem iria relacionar seus bate papos, pois sua lista seria imensa, mas não resistiu e exaltou Saramago e Augusto Boal, com quem, aliás, foi fotografada e cuja foto está exposta no corredor de nossa casa. Revelei que meus papos são diários com Kiko, Chico e Abê, pelas coisas que me deixaram na música. E contei que meu pai lutava contra o câncer e percebeu que perderia, por isso, pouco antes de morrer, me pediu que o levasse aos dois clubes da cidade. Não entendi, mas o levei. Nas secretarias dos clubes ele perguntou se estava em dia com as mensalidades. Num deles, faltava pagar o mês corrente, no outro, a mensalidade estava em dia. Ele deixou tudo em dia e entregou uma carta de demissão do quadro de associados em cada clube. Esse ato martela na minha cabeça diariamente.
“Pois é! O Godinho conversa com os trens de passageiros, que já não existem mais no Brasil, porque estes tiveram uma presença muito forte em sua vida. Foi o trem que o levou a Mairinque pra se formar no primário; depois, o levou a São Roque, para completar o segundo grau; e finalmente, o levou para São Paulo, para se graduar na USP.”, relatou Maracatu. “E quando ele falou do cheiro da mata orvalhada; o ar de Canguera com perfume da uva no fim da colheita; do gosto do doce de mandioca em calda que sua avó fazia? Não era um diálogo com o passado, porque tudo aquilo estava muito presente em sua mente. Isso é vida.”, afirmou Lambada.
“Meu deus! Vamos abrir uma cerveja, Tom?”, perguntei. “Eu não bebo, João.”, respondeu o Tom, que não demorou a refazer sua posição. “Abra uma. Acho que agora vai ser bom.” “Eu tomo um copo também.”, disse a Lisa.
Abri a cerveja e saudamos aquele momento. Maracatu e Lambada foram para o quartinho acordar as meninas e Tom, o gato, acordou com o bater dos copos; bocejou, cumprimentou o padrinho e contou que havia sonhado que estava no sossego da mata, esticado sobre as folhas secas, quando veio uma raposa e roubou o cacho de uva que ele estava comendo. “Aí, acordei apavorado, mas vi que me encontrava na segurança do meu lar.”, falou, sorrindo, o gato, que continuou. “Mas a vida não é essa segurança toda. Há momentos...”. “Ah, Tom, pode parar. Não vai filosofar sobre a vida também, vai?”, perguntou a Lisa. “Não. Eu ia dizer que há momentos de insegurança, como o que estou vivendo agora.”, revelou. “O que está acontecendo, Tom?”, perguntei apavorado. “A ração está acabando e não vi vocês falarem em comprar mais. Isso me deixa inseguro.”, respondeu o gato, olhando firme pra mim e pra a Lisa. A Lisa não agüentou e atirou o chinelo em sua direção. Ele desviou e saiu correndo. E rindo muito.

João Bid

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

TOM DIEGO

Naquela madrugada, ficamos um tempo acordados com os miados enfurecidos que vinham do quintal do vizinho. “Ele achou um gato pra brigar.”, disse a Lisa, se referindo ao Tom, nosso gato. “Fazia tempo que ele não saia de casa pra brigar.”, observei. “Apareceu algum gato novo na área.”, concluiu a Lisa.
De manhã, chega o Tom cansado e com as unhas esfareladas, procurando um espaço pra dormir.
Antes dele se acomodar, verifiquei se ele não apresentava nenhum machucado. Não, não tinha se machucado. Mais uma vez ele havia brigado e, pelo jeito, se saiu vitorioso, apesar de eu entender que numa briga não há vitoriosos. Todos perdem.
“Tom... Tom... vamos conversar!”, chamei. “Deixa ele dormir, João! Ele ta cansado.”, me aconselhou a Lisa. “Eu tô cansado. Deixa eu dormir e depois a gente conversa. Já sei que vocês não estão felizes com minhas brigas, mas depois explico.”, disse o Tom, já dando voltas e fazendo ninho no sofazinho laranja que temos na sala. “Ah! Ele sabe que fez besteira, mais uma vez.”, falei, me dirigindo à Lisa.
Todos os animais que vivem em casa têm dois nomes e um sobrenome; já os divulguei em outros artigos; o Tom é o único que tem apenas um nome e sobrenome. Pra quem não se lembra, ele se chama Tom Raviolli, uma homenagem a nosso amigo Tom Ravazolli. Depois dessas brigas, resolvemos dar um segundo nome ao Tom. Agora ele se chama Tom Diego Raviolli.
As pessoas da nossa geração devem estar pensando que Tom Diego é uma homenagem ao Zorro, pseudônimo daquele personagem justiceiro da nossa época, cujo nome era Dom Diego de La Vega, mas não é. O Diego, do Tom, é uma homenagem a um amigo, um dos nossos queridos “filhos”, que adora uma encrencazinha. Obviamente, ele sempre tem razão nessas brigas, como o nosso Tom, mas, vira e mexe, ficamos sabendo de mais uma.
Quando falei pra Lisa que o Tom passaria a se chamar Tom Diego, pelos motivos já expostos, ela disse: “Mas o Rodolpho vai ficar com ciúmes, pois ele sempre está com o Diego nessas encrencas”. É verdade. O Rodolpho sempre está ao lado do Diego nas brigas, mas escolhi Diego, porque, como o Tom, é ele quem ganha as brigas e sempre sai intacto. Em compensação, o Rodolfo sempre se dá mal.
Expliquei tudo isso, inclusive, na presença de Maracatu e Lambada, o casal de sacis, que havia acabado de chegar e estava sentado na tesoura aparente, que sustenta o telhado da nossa sala. “Nossa! O Rodolpho e o Diego são tão legais. Não dá pra imaginar que eles perdem tempo com brigas.”, disse, a sempre sensível, Lambada. Respondi que são duas pessoas maravilhosas, mas brigam. “Num momento em que o ser humano está necessitando de carinho, de compreensão...”, divagou Maracatu. “Pois é! O pior é que são duas pessoas sensíveis.”, disse a Lisa. “Mas são jovens.”, afirmou Lambada, que arrematou: “Mais tarde eles vão aprender a dar às costas para a ofensa; vão aprender a se colocar num nível superior a essas bobagens de machistas antigos. Mas, se são sensíveis, eles têm a chance de entender tudo isso mais rápido”.
“Eu sei o que é isso.”, disse o Tom, agora Tom Diego, acordando. “Nós temos a necessidade de defender nosso território; o compromisso de demarcar nosso espaço; e a vaidade de mostrar pras gatas da nossa área, quem é que manda no nosso quintal. Nada podemos fazer contra nossos instintos.”, concluiu o gato. “Pode parar Tom. Você está colocando Rodolpho, Diego e você no mesmo caldeirão, o que não está correto. Teoricamente, você tem um pouco de irracionalidade ainda e podemos entender essa coisa de não dominar o instinto. Não é o caso deles.”, argumentei. Nessa altura da conversa, as cadelas já estavam na porta da sala ouvindo a conversa e Salsa não resistiu à sua vontade de filosofar. “É mais fácil ter ódio. O ódio não inibe; o amor, sim. As pessoas têm vergonha de amar. É muito difícil você presenciar uma explosão de amor, enquanto que a manifestação de ódio é corriqueira entre os humanos. Precisamos pensar nisso...”, fechou a conversa nossa idosa cadela, que, em seguida, saiu cheirando as flores que nesta época do ano brotam das ervas daninhas e colorem nosso gramado.
Jamais vou contar este nosso papo pros nossos dois queridos, porque eles podem achar que nós só sabemos criticar e talvez não entendam que, por gostarmos tanto deles, acabamos sentindo as mesmas preocupações de pais verdadeiros; daqueles pais que querem criar seus filhos sem preconceitos, ligados às artes, amantes de livros e discos, enfim, daqueles pais que querem contribuir para que seus filhos sejam seres humanos de verdade.
Mas acreditamos que um dia eles, nossos queridos, vão entender que é menos dolorido para todos, tanto física como sentimentalmente, fugir das confusões e deixar os adversários com a sensação da vitória. Pode ser que eles aprendam com isso.    

João Bid

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O BATIZADO DA MARIA CECÍLIA DEU O QUE FALAR EM CASA

Fui ao batizado da minha sobrinha/neta, a Maria Cecília, no domingo, dia 7, e logo que cheguei na igreja vi que Maracatu e Lambada já estavam sentados ao pé da escadaria que leva ao altar. Eles não perdem um evento que tem a ver comigo ou com a Lisa, mas achei estranho o casal de sacis se interessar por um batizado. Não dei bandeira, mas fiz sinal pra eles não aprontarem nenhuma na igreja e eles concordaram, fazendo um gesto que dizia que eles sabiam onde estavam. Ainda bem que ninguém os viu e, se viu, não se assustou, ou não acreditou... Sei lá! Quem os viu e adorou, foi a Maria Cecília. Eles ficavam fazendo graça e ela sorria o tempo todo, o que deixou todos os presentes encantados com ela. A Maria Cecília é uma graça e me deixou muito feliz por não estranhar meus sacis. Até aí, tudo bem!
Após o batizado, eu e Lisa tínhamos um compromisso em São Roque e voltamos pra casa somente no início da noite. Todos estavam na varanda num papo barulhento, porque falavam ao mesmo tempo. O Tom, deitado na espreguiçadeira, a mesma que era da Rumba, mas a Rumba cresceu tanto, que não cabe mais naquele espaço; as cadelas, deitadas no chão; e o casal de sacis, que coordenava a conversa, sentado na mesinha. Desta vez a conversa era sobre Deus. Conversa, aliás, que começou depois que Maracatu e Lambada contaram sobre o batizado da Maria Cecília.
Eu e Lisa, cansados e percebendo a complexidade do tema, passamos no meio da turma e fomos entrando na casa. “Ajudem a gente a entender algumas coisas sobre Deus.”, pediu a Valsa. “Será que nós sabemos mais do que vocês?”, perguntou a Lisa. “É claro que sim. O Maracatu e a Lambada contaram pra gente sobre o batizado da Maria Cecília e, segundo eles, o padre falou o tempo todo sobre Deus. E você deve saber tudo, João, porque em nenhum momento questionou o padre.”, disse o Tom. “Saia dessa!”, me disse a Lisa, indo direto para o banho.
Percebi que não conseguiria escapar da conversa e sentei na soleira da porta. Comecei me confessando um ignorante no tema, além de agnóstico, por isso, seria difícil falar sobre algo que foge das explicações humanas, mas informei que o batizado da Maria Cecília era uma reunião de cristãos católicos e, para estes, existe um único Deus, que é pai de Jesus Cristo e criador deste mundo. “Criou todos nós?”, perguntou a Rumba. “Se é o criador deste mundo, criou todos nós.”, disse ironicamente a Samba. “Então o mundo está sob os olhares de um único Deus?”, perguntou a Salsa. Eu disse que, para os cristãos, sim, mas argumentei que existem outras religiões, cujos fiéis acreditam em Deuses, ou num outro Deus.
A coisa começou a ficar complicada, quando a Valsa resolveu analisar a situação. “Hitler era cristão; São Francisco de Assis era cristão; isso quer dizer que o Deus de Hitler é o mesmo Deus de São Francisco?”, perguntou a cadelinha.  Respondi que, teoricamente, sim. “Mas o Deus do vereador Carlos Apolinário não pode ser o mesmo Deus da irmã Dulce, por exemplo, embora os dois sejam cristãos. O Apolinário acabou de propor a criação do ‘Dia do Orgulho Heterossexual’, para preservar a família e os bons costumes, demonstrando claramente todo seu preconceito, coisa que a irmã Dulce jamais teve. Como é possível os dois acreditarem no mesmo Deus?”, filosofou Lambada. Fiz uma tentativa de falar, mas fui interrompido por Maracatu. “Frei Tito e Médici eram cristãos. Um foi torturado quando o país era comandado pelo outro. Seguiam o mesmo Deus?”, perguntou o saci.
Após essa pergunta, fez-se silêncio e todos refletiram. “Cada um de nós tem seu próprio Deus.”, definiu Lambada, interrompendo o silêncio. “Ou... cada um de nós é Deus.”, concluiu Tom, sorrindo e enchendo o peito para iniciar um discurso. Interferi citando uma poesia de Roberto Godinho, um escritor são-roquense, que fala sobre a ansiedade de um homem no dia em que conheceria Deus e sua surpresa quando lhe mostraram um espelho.
Não chegamos à conclusão alguma, mas avançamos um pouco num tema que deverá estar presente em outras de nossas conversas, que também não serão conclusivas.
Encerramos aquele papo, mas percebi que as cadelas, os sacis e o gato ficaram um pouco frustrados, porque, tarde da noite, da janela do meu quarto, ouvi trechos do debate que eles ainda travavam na porta do quartinho, até que a Valsa, entre um bocejo e outro, questionou Maracatu e Lambada. “Por que vocês não perguntaram pra Maria Cecília? Acho que só ela tem essa resposta.”
O Tom, que estava quase dormindo ao pé da minha cama, despertou. “Sabe que a Valsa tem razão!”, disse o gato, arrematando, um pouco decepcionado: “Pena que nós nunca vamos saber, porque quando a Maria Cecília estiver falando já terá recebido todas as influências do meio e não se lembrará desta e de muitas outras coisas interessantes.” Colocou a pata esquerda sobre os olhos, para evitar a luz da TV, e voltou a dormir.

João Bid

sexta-feira, 22 de julho de 2011

E VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE

A Lisa vive um momento especial em sua vida. A “CiadeEros”, grupo de teatro da cidade de São Roque, formado por adolescentes e dirigido por ela, tem se destacado na região com a peça “Era uma vez”, pois essa montagem ganhou o direito de representar a cidade de São Roque no Mapa Cultural deste ano; foi selecionada para se apresentar no Festival de Teatro Livre, organizado pela Associação Teatral de Sorocaba; e acabou de ser selecionada para participar do Festival de Teatro do Sesi de Sorocaba. Além desse fato, Lisa anda muito orgulhosa com os prêmios que o ator mairinquense Lélis Andrade vem recebendo nos festivais que participa, atuando no grupo de teatro da Faculdade de Artes Cênicas de Salto, pois ela acabou sendo decisiva para que Lélis escolhesse, acertadamente, a profissão de ator. 
Aliás, todos lá de casa estão em festa e muito orgulhosos com as performances da “CiadeEros” e com as conquistas do Lélis. Esses meninos e meninas são os filhos que não tivemos biologicamente e vivem em casa, portanto, as cadelas, os sacis e o Tom também os consideram da família.
Fiz esse preâmbulo pra contar que a CiadeEros trocou todo o figurino da peça por um novinho e belíssimo, desenhado por Marco Lessa e confeccionado pela Chiquita, minha sogra, e o figurino antigo está guardado no quartinho do fundo, lá em casa. Como já disse pra vocês, os sacis contam detalhadamente pras cadelas e pro gato tudo que assistem e de uma forma que eles acabam tendo acesso às imagens e som dos espetáculos. Fizeram isso com o espetáculo “Era uma vez” e a turma ficou muito emocionada com a história de João e Maria Ninguém, alguns até choraram com o fim da história; riram muito com a Fulana, a Beltrana e a Sicrana, bem como, com as duas velhinhas; ficaram com raiva do Tenente; e odiaram o senhor Poder. 
Esta semana, estávamos arrumando a cozinha do jantar, quando o casal de sacis, Maracatu e Lambada, nos informou: “Vocês estão convidados a, em dez minutos, assistirem o espetáculo teatral ‘E viveram felizes para sempre’, encenado pela ‘CiadeAfrodite’, na passarela do quintal.”
Deixamos a cozinha para o outro dia e fomos para o quintal. 
As cadeiras foram colocadas no gramado dos dois lados da passarela, direcionadas para o centro, na circunferência maior do piso. Platéia lotada. Estavam todos os gatos da vizinhança, curupiras, sacis, iaras e boitatás. Dois lugares reservados para nós.
A Lambada dirigiu a peça e Maracatu fez a sonoplastia e a iluminação. Importante ressaltar que os sons vinham de algum lugar, que não identificamos e que Maracatu fez questão de não contar, e a iluminação era natural. Aquela era noite de lua cheia e Maracatu, também de uma forma que não nos explicou, exercia total domínio sobre as nuvens e fazia com que estas passassem em frente à lua conforme a necessidade de mais ou menos luz e, vez ou outra, uma ou outra estrela brilhava com maior ou menor intensidade. A iluminação que a Dani Oncala fez no “Era uma vez” estava belíssima, mas a de Maracatu...
A história da peça também se passava num país fantástico, porém, nada de autoritarismo como no “Era uma vez”. Nesse país existia liberdade; direitos e deveres; não existiam políticos corruptos; as críticas eram debatidas e os elogios não existiam, porque todos tinham consciência de que fazer o certo não era nada mais do que a obrigação dos que estavam no poder; não existiam os preconceitos; enfim; todos eram tratados com igualdade. De repente, entra o Tom com o figurino do João Ninguém: bermuda, uma camisa simples e de chapéu. “Esse gato não tem jeito. Tinha que ser o protagonista.”, sussurrou a Lisa no meu ouvido. No mesmo instante, a luz de uma estrela fica mais intensa do outro lado da passarela, onde aparece, com o figurino de Maria Ninguém, a Valsa. “E a Valsa ia deixar barato?”, perguntei, também sussurrando para a Lisa. E a peça seguiu, até que entra a Rumba, fazendo três papéis: Fulana, Sicrana e Beltrana. Nessa cena, as Três Marias, as estrelas, trabalharam de verdade, porque ficavam acendendo e apagando conforme o texto fluía na boca de Rumba, que pulava de foco em foco para fazer, com competência, os três papéis. Quase morremos de rir com a Rumba, mas ainda sobrou vida para rirmos muito com as duas velhinhas: Samba e Salsa. A Samba oferecia chá e a Salsa falava: “Aceito um bocadinho.” Pra ficar mais real, a Salsa fez uma velhinha com catarata, que não conseguia acompanhar os passos da Samba. Ia sempre para a direção oposta. Percebemos que a peça caminhava para o fim, quando, ao término da cena das mocinhas, interpretadas por Rumba, Samba e Salsa, as nuvens se colocaram em volta da lua e formou-se um foco na entrada do quartinho, de onde saiu Tom, vestido de Smoking, usando gel nos pelos, e a seu lado, Valsa, de véu e grinalda. Era o casamento de João e Maria Ninguém. Logo atrás do casal, vinham Samba, Salsa e Rumba, esta última jogando arroz, e o fundo musical era a música composta por Edson D’aísa para a peça “Era uma vez”. Maracatu adorou a composição e não quis trocá-la. A surpresa ficou por conta de uma revoada de maritacas, que saiu do abacateiro do vizinho em direção da torre de celular, que fica em frente à nossa casa. O cortejo passou pela passarela sob os aplausos de todos. “E assim, viveram felizes para sempre”.
Essa peça vocês não vão poder assistir, porque a CiadeAfrodite já informou que a apresentação foi única, já que a própria arte de encenar é única, além do fato de que a iluminação estaria prejudicada, pois não se sabe quando a lua estará na mesma posição e cheia outra vez; mas a peça “Era uma vez” continua em cartaz e é necessária para todos nós. Assistam.

João Bid